A estranha verdadeira história de William O’Neal em Judas e o Messias Negro

18/02/2021

Tradução: Eliza C. Gonçalves

Trechos ainda não expostos de sua entrevista de 1990 para o Eyes on the Prize verteram luz sobre um homem em conflito.

Quando se trata de William O'Neal, o informante "camaleônico" do FBI que se infiltrou no Partido dos Panteras Negras de Illinois no final dos anos 60, nem mesmo a verdade pode ser confiável.

Assistindo sua reveladora entrevista na série documental de 1990 "Eyes on the Prize II", você teria dificuldades em identificar um semblante de culpa ou vergonha acerca de seu papel dentro da violenta queda do grupo de Chicago. Da mesma forma, ele se recusou a aceitar qualquer culpa pelo assassinato do presidente do Black Panther, Fred Hampton nas mãos do Departamento de Polícia de Chicago em 1969.

"Se eu sinto que eu traí alguém? Absolutamente não. Eu não tinha fidelidade com os Panteras", disse O'Neal ao entrevistador, em uma sessão que acabou não entrando ao ar. Ele simplesmente se considerava um homem que "teve a coragem de sair e arriscar"; um homem que havia se tornado uma "pessoa melhor" por meio de seu trabalho com o FBI. No fim da conversa, ele parecia otimista sobre seu legado. "Acho que vou deixar a história falar por mim."

E a tal promessa O'Neal manteve-se firme. Nove meses depois de conduzir a entrevista bombástica, na madrugada de 15 de janeiro de 1990, o homem de 40 anos cometeu suicídio, correndo em direção às pistas da via expressa Eisenhower ao oeste de Chiago.

Cenas do show, tanto reais quanto recriadas, sustentam Judas, o Messias Negro, o novo filme do diretor Shaka King, que investiga o relacionamento dúbio ocorrido entre O'Neal e Hampton a pedido do FBI. O filme pinta uma imagem escorregadia do espião, interpretado por LaKeith Stanfield - mas quanto disso é baseado na verdade?

O filme começa com William O'Neal entrando em um salão de bilhar em South Side vestido como um agente do governo em um chapéu Stetson. Ele confronta um grupo de membros de gangues negras usando boinas verdes, exibe um distintivo do FBI e começa a chacoalhá-los, antes de falhar em conseguir fugir com um de seus carros. É uma maneira asseada de estabelecer o talento de O'Neal para a fraude, e adiciona uma carga pesada à sua ficha policial ("cinco anos por se passar por um oficial federal") que explica de certa forma o porquê de ele concordar em trabalhar para o governo como informante.

Segundo o próprio O'Neal, ele roubou um carro com seu amigo e o dirigiu através das fronteiras estaduais até Michigan, onde "teve um acidente" do qual fugiu (tinha 17 anos na época). Infelizmente para ele, havia assinado seus dados pessoais em um salão de bilhar próximo, antes do incidente misterioso, e foi assim que o agente do FBI Roy Mitchell conseguiu chegar até ele meses depois. Inicialmente o agente não lhe pediu nada. De acordo com O'Neal, "Ele disse algo como, 'Bem, você sabe, não há necessidade de você tentar me enganar. Eu sei que você fez isso, mas não é grande coisa [...] Tenho a certeza de que podemos resolver.'"

A essa altura, o adolescente já tinha uma ficha criminal suficientemente pesada, pendurada sobre ele. Nos anos anteriores à sua morte, O'Neal revelou a seu tio, Ben Heard, que esteve envolvido em invasão de domicílio, sequestro e até tortura durante sua juventude. "Ele disse que amarraram alguém e jogaram água quente em sua cabeça", revelou Heard. "Eles estavam tentando convencê-lo a fazer alguma coisa." De acordo com o jornal The Chicago Tribune, O'Neal na verdade foi preso por exibir um distintivo falso do FBI muitos meses depois de o agente do FBI ter entrado em contato pela primeira vez. Como informante, O'Neal recebia 300 dólares por mês, além de bônus substanciais.

Apesar de seus crimes do passado, O'Neal admitiu que antes nutria ambições de proteger a lei. "Acho que cresci querendo ser policial, admirando e respeitando os policiais, embora sempre tenha achado que isso estava fora do meu alcance", disse ele ao Eyes on the Prize em outro segmento não exibido. Sendo assim, talvez explique por que O'Neal gravitou em torno do agente do FBI Mitchell com tanta facilidade. "Ele nunca usou a palavra informante. Ele sempre disse: 'Você está trabalhando para mim', e eu o associei ao FBI [...]. "Senti que estava trabalhando disfarçado para o FBI, fazendo algo de bom para a melhor organização policial da América. E então eu estava muito orgulhoso." Ao contrário da trama que ocorre de maneira acelerada no filme, quase meio ano se passou antes que Mitchell realmente pedisse a O'Neal que se juntasse aos Panteras Negras.

É verdade que Mitchell acolheu O'Neal em sua vida e o apresentou à sua família, e um forte vínculo emocional foi formado nessa época. "Eu estive na casa de Mitchell. Eu segurei seu filho em minhas mãos, em meus braços quando ele tinha um ano de idade", disse ele. "Mitchell foi um modelo para mim, quando eu precisei. Tínhamos muito poucos modelos de comportamento naquela época. Tínhamos Martin Luther King, Malcolm X, Muhammad Ali, eu tinha um agente do FBI."

Fred Hampton
Fred Hampton

Tanto em vida quanto em filme, O'Neal se infiltra nos Panteras Negras de Illinois apenas para descobrir que suas suspeitas de violência e crime de rua eram infundadas. "Eu esperava que houvesse armas e que estaríamos lá fora travando herdados territórios com as gangues locais, mas eles não tinham nada a ver com isso", revelou. "Eles estavam na cena política: a guerra no Vietnã, Richard Nixon, e especificamente na libertação de Huey [P Newton, o co-fundador dos Panteras Negras que foi condenado por seu papel na morte de um policial]. Isso era o negócio deles."

De acordo com o livro O Assassinato de Fred Hampton, O'Neal era quem pressionava pela violência. "Ele defendeu a linha mais militarista; ele frequentemente carregava uma arma; ele estava constantemente sugerindo que outros Panteras se envolvessem em atividades criminosas", escreve o autor e advogado Jeffrey Haas. Ele prossegue dizendo que Fred Hampton ficou desconfiado da preocupação de O'Neal com armamentos e, aparentemente, rebaixou-o de chefe de segurança para "mensageiro" como resultado. (O'Neal até construiu uma cadeira elétrica para, em suas próprias palavras, "punir e dissuadir os informantes". Ele alegou no tribunal que foi "a pedido de Hampton e [Bobby] Rush.").

Independentemente disso, O'Neal passou a gostar e respeitar o presidente do grupo. "Achei Fred Hampton muito idealista. Ele era muito dedicado à luta dos Negros ", disse ele ao Eyes on the Prize. "Eu senti que ele se doou muito. Ele deu a vida e, dos 16 meses que o conheci, não tenho nada de ruim a dizer sobre ele [...] Se ele vivesse hoje, provavelmente seria um político, um político de sucesso ".

Seu veredicto público sobre o movimento dos Panteras Negras foi decididamente menos positivo. "Muitos Panteras morreram em Chicago, foram mortos desnecessariamente e sem sentido. Nesse momento questionei todo o propósito do Partido dos Panteras Negras. Estava machucando muita gente, fazendo pouco mais do que isso.", disse ele aos documentaristas. "Quero dizer, se você associar o Partido dos Panteras Negras ao Movimento dos Direitos Civis, isso é um erro. Ao meu ver, eles foram necessários. Foi um tratamento chocante para a América branca ver homens negros correndo com armas, assim como os negros viram homens brancos correndo com armas."

Daniel Kaluuya é Fred Hampton em Judas e o Messias Negro
Daniel Kaluuya é Fred Hampton em Judas e o Messias Negro

É difícil saber o que O'Neal realmente pensa sobre as ambições e ações do partido, e muitos sugeriram que ele foi dominado pela culpa - incluindo o irmão de Fred Hampton. "O ato que ele cometeu foi injusto e ignorante", disse ele logo após a morte de O'Neal. '' É algo com que ele tentou conviver mas não conseguiu.''

No filme, o agente do FBI Mitchell tenta consistentemente corromper a percepção de O'Neal sobre o grupo e, eventualmente, teme que ele tenha sido doutrinado durante um dos comícios de Hampton. "Aquele dia no discurso? Eu observei você. Lembro-me de pensar comigo mesmo: 'Ou esse cara merece o Oscar ou ele realmente acredita nessa merda". Na mesma conversa, que fica cada vez mais furiosa e sinistra, ele exige que O'Neal desenhe uma planta baixa do apartamento que fica no lado oeste do apartamento de Fred Hampton, onde o informante disse a ele que grande parte da artilharia do grupo é mantida. Ele concorda.

William O’Neal
William O’Neal

Em sua entrevista para a TV, O'Neal admite que acreditava que haveria uma invasão ao apartamento de Hampton após o recente assassinato de dois policiais por um Pantera Negra, mas negou qualquer conhecimento de assassinato premeditado. Ele disse que descobriu sobre as mortes de Hampton e vários outros membros do Black Panther na manhã seguinte, quando entrou na sede da organização e viu um exemplar do jornal Chicago Sun Times. Ele disse que depois foi para o apartamento, e que este estando encharcado de sangue ruminou sobre seu papel no ataque. Ele se sentiu "mal" e "bravo" e começou a questionar o propósito da missão do FBI. Então, de certa forma rindo, ele disse que se sentiu "traído".

"Eu senti que se alguém deveria saber que haveria um ataque surpresa naquela manhã, deveria ser eu", disse ele. "Eu senti que poderia ter sido pego naquela invasão. Eu estava lá naquela noite e senti que se tivesse me deitado, provavelmente teria sido uma vítima. Então me senti traído, me senti como se fosse dispensável."

Ele disse que não falou com Mitchell por alguns dias, mas finalmente o encontrou para um drink. O agente do FBI supostamente disse a ele que também não sabia que isso iria ocorrer, o que O'Neal disse que era "difícil para ele acreditar". Basicamente, ele apenas calculou a magnitude da operação em que estava envolvido. "Eu comecei a entender basicamente o quão sério e mortal era o jogo que todos jogávamos por 16 meses, a realidade do que estávamos fazendo, nos veio à tona apenas naquela manhã."

O filme conta as coisas de maneira um pouco diferente. Na visão de eventos de Shaka King, O'Neal está bebendo sozinho em um bar quando um estranho se aproxima dele. Ele diz a O'Neal que sabe que trabalha para o FBI, e desenrola um jornal à sua frente, revelando um envelope não marcado contendo uma substância em pó... "Eu preciso que você deixe o presidente ler amanhã à noite. Coloque isso na bebida dele." O'Neal o enxota com raiva, e o estranho sai sem seu jornal.

Estranhamente, em sua entrevista para o Eyes on the Prize, O'Neal se recusou a aceitar a ideia de que Hampton poderia ter sido drogado por qualquer pessoa, muito menos por si mesmo. "Eu não acredito. Simplesmente não há maneira. Fred era o tipo de pessoa que você não precisava drogar de qualquer maneira. Fred estava sempre cansado. Ele poderia entrar no carro e não poderíamos andar dois quarteirões sem que ele cochilasse. Quero dizer, ele era uma pessoa de alta energia que funcionava com muito pouco combustível e, onde quer que se sentasse, ele estava bem descansado."

O'Neal não deu motivos para deixar o apartamento de Hampton mais cedo naquela noite. Na entrevista, ele descreveu como "um tipo de dia melancólico", em que os homens Panteras descansavam enquanto as mulheres preparavam espaguete e chilli.. No depoimento que se seguiu, ele disse que suas memórias das horas anteriores ao ataque eram confusas. Mas um associado criminoso acabou testemunhando sob juramento que, quando os dois estavam drogados, O'Neal admitiu ter drogado Hampton na noite do ataque; uma dose substancial se Secobarbital (sedativo) num copo de suco em pó.. Em 4 de dezembro às 04h45, uma equipe de policiais armados com uma submetralhadora calibre 45 e duas espingardas invadiram o apartamento de Hampton, onde mataram os líderes dos Panteras Negras Mark Clark e Fred Hampton. O sangue do presidente foi eventualmente testado pela química do Condado de Cook, Dra. Eleanor Berman, que encontrou uma dosagem alta de barbitúricos. Ele tinha apenas 21 anos.

De acordo com O Assassinato de Fred Hampton, O'Neal implorou à família Hampton para permitir que ele ajudasse a carregar o caixão, com o que eles concordaram. Ficou claro, mesmo em sua entrevista de 1990, que o presidente deixou uma grande impressão sobre ele. "Todas aquelas pessoas que compareceram ao funeral de Fred Hampton e olharam seu caixão", disse ele, "não deram a ele dez minutos de seu tempo quando ele estava vivo". O'Neal continuou a trabalhar para os Panteras Negras, conforme o número de membros rapidamente decrescia, antes de 1971, quando afastou-se para se tornar o proprietário e gerente de um posto de gasolina em Maywood, não muito longe da casa de Hampton. Dois anos depois, o jornal Chicago Tribune estragou seu disfarce como informante do FBI, e ele foi transferido pelo Programa de Proteção a Testemunhas para a Califórnia sob o pseudônimo de "William Hart".

Ele secretamente retornou a Chicago por volta de 1986, trazendo sua nova esposa e seu filho de cinco meses com ele. Ele recorreu a alguns velhos conhecidos, mas a maioria manteve-se calado, acabando por conseguir trabalho com um advogado no distrito central da cidade. Ele perdeu o emprego pouco antes de seu suicídio, devido a um desentendimento com seu chefe.

Ninguém sabe ao certo o porquê de O'Neal escolher falar sobre seu passado na TV nacional, nem o porquê de decidir acabar com sua vida prematuramente - mas as pessoas em toda a divisão política compartilhavam uma teoria em comum. "Ele sempre foi um cara misterioso", disse um oficial que o conhecia bem ao Chicago Tribune após sua morte. '' Ele poderia desempenhar todos os papéis, cada parte que eles [os agentes do FBI] precisassem. Acho que ele nunca tirou isso de seu sistema e ficou confuso.''

Talvez a verdadeira resposta esteja numa entrevista de 1984 que ele deu ao mesmo jornal.


"Se você me perguntar se os ganhos superam as perdas, acho que sim", disse ele ao repórter. "Eu acho que se eu olhar para trás, se eu nunca tivesse conhecido Mitchell, provavelmente estaria na prisão ou morto.

'' Se você me perguntar se eu sou um homem feliz? Não sou feliz, não. Eu nem sou contente.''



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