5° Parte

04/04/2021

E logo após passearem pelo centro da cidade, voltaram para a ONG. Analu e Zé passaram a noite conversando, mal sentiram a hora passar, e teoricamente, ele não teria onde passar a noite, então foi para a casa de Analu e dormiu num quarto para hóspedes. Assim foi o primeiro dia de liberdade de José Torres. A casa de Analu era da Corporação, fazia tudo parte do script. Mas o único estranhamento era o fato da ONG estar sediada numa periferia, já que toda a cidade encontrava-se em modernização. 

A um tempo atrás, a classe proletária reivindicou, lutou, quase colocou a cidade abaixo para protegerem o único bem que eles tinham, seu lar. O antigo Morro da providência, permanecera no Rio de Janeiro moderno, como único símbolo de desigualdade social do governo de Benício da Silva. Era uma espécie de oposição consentida. Era vigiado e continha as mesmas coisas que a cidade grande, porém para a classe mais pobre. A diferença é que a repressão e a tolerância eram bem mais reduzidas, já que aquele morro não passava de um "mal a ser combatido" uma hora ou outra, caso os cidadãos desobedecessem as leis impostas. Então, os periféricos eram a categoria de pessoas mais dominadas pelo governo atual. Não só como também, todos os planos e normas para serem adquiridas na cidade, eram testadas na periferia, esse era o preço de ser pobre, passar por este eterno castigo e em troca ter onde morar. 

José pôde perceber que no morro havia muita cor, muito amarelo, muito marrom e principalmente, muito preto. A periferia e o presídio tinham em consonância a quantidade de pessoas negras quase que na mesma proporção e todas com suas liberdades cerceadas pelo mesmo governo. Isso ecoou bastante em seus pensamentos e gerou uma espécie de frustração, inconformidade, talvez, mágoa; muito porque esse sentimento já estava adormecido em seu peito, mas nunca havia sido acordado até ele sair da prisão e sentir que tudo parecia a mesma coisa. 

Analu entrava em contato com os diretores da Corporação todas as noites e tudo estava indo bem como planejava, até que numa noite ela ouviu gritos de socorro e desespero saindo do quarto de hóspedes, deu um pulo da cama, pegou sua arma e correu para o quarto, quando chegou lá era Zé num pesadelo que aparentemente mexia muito com ele. Analu tentando acordá-lo disse: 

         - "Zé...Zé...Zé...Zé" 
E nada dele acordar
         -"JOSÉ ACORDA!" 

Ele tomou um susto, acordou acelerado, suado e muito desnorteado. Mal acreditou que tudo não passava de um sonho. 

E disse agitado: "Analu, eu vi caras que me arrancavam de minha mãe, me jogaram em navios, cuspiam, pisoteavam em mim, me batiam, me jogaram num lugar que eu mal conhecia, e faziam isso comigo, com outros homens e inclusive com moças grávidas. Eu passava dias lá ouvindo o grito de agonia de todas as mulheres tentando amamentar seus filhos e no lugar do leite saía sangue de suas mamas. Foi uma visão terrível, estou completamente amedrontado."

Analu ouvia ele falar e por dentro parecia feliz, porque sabia que Zé estava começando a lembrar de seu passado. Então, logo ela disse: 

- "Eu tenho algo aqui que você deve gostar. Vai fazer você entender o que foi isso que viu." 

Ela correu e buscou na sua estante um livro de história do mundo, do século 16 ao século 18. 

"Eu não vou te dizer nada, só quero que você tenha todo o tempo do mundo para entender o que foi isso que você viu através disso que estou te dando...te dando não, emprestando. Mas assim que você acabar, aqui na estante tem outros parecidos, fique à vontade.". 

"Agora sim começou!", esse foi o sentimento que Analu sentiu. Os dias se passaram e todos os dias após as lições do novo programa do governo de Benício, o acolhimento de Zé se dava sempre em que ele abria um livro sobre a história do seu povo. Um livro após o outro, desde o princípio até a descolonização mental. Ele conheceu personalidades da época como Angela Davis, Abdias do Nascimento, Malcolm X, Machado de Assis, Frantz Fanon, Martin Luther King, Lélia Gonzalez, Lázaro Ramos, Thais Araujo, Silvio Almeida, Djamila Ribeiro e quiçá Laura Lopes. Nessa estante, Zé teve a oportunidade de mergulhar em arte, revolução e muitíssima literatura. O céu era o limite. 

"Cada geração deve, numa relativa opacidade, descobrir a sua missão, cumpri-la, ou traí-la [...]. A nossa missão histórica, a missão daqueles que tomarem a decisão de acabar com o colonialismo, consiste em ordenar todas as revoltas, todos os actos desesperados, todas as tentativas abortadas ou afogadas em sangue." 

- Frantz Fanon

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