DESIGUALDADE E LETALIDADE

14/01/2021

UMA ANÁLISE DO GENOCÍDIO DA JUVENTUDE NEGRA NO BRASIL

Thaina Salgado Chagas
Prof. Orientador: Márcio Sampaio de Castro

RESUMO

O artigo discute a necropolítica como consequência do racismo estrutural, fruto da sociedade escravista, e do ordenamento social da sociedade brasileira. Para isto, são analisados os desdobramentos da normatização do racismo que incide sobre as instituições, sobretudo as do Estado. Ao analisar a concepção do imaginário social a respeito dos corpos negros, procura compreender o seu reflexo sobre a vida e a morte da população negra, especialmente na forma de intervenções policiais que levam a alarmante taxa de mortandade de jovens negros no estado de São Paulo. Para tanto, a pesquisa é embasada por uma revisão bibliográfica, tendo como base os autores Achille Mbembe, Abdias do Nascimento, Carlos Alfredo Hasenbalg, Clóvis Moura, Silvio Almeida e Renato Ortiz unida a uma análise de dados a fim de descrever o fenômeno do racismo estrutural por meio de estatísticas elaboradas por órgãos nacionais.

Palavras-chave: racismo estrutural; genocídio; juventude negra; necropolítica

  1. Introdução

A escravidão ao longo dos seus mais de 300 anos deixou marcas profundas na sociedade, impactando severamente nas relações raciais e sociais do Brasil. Este artigo parte do princípio de que há uma relação direta entre a permanência de valores do instituto da escravidão e as dinâmicas sociais para analisar as relações raciais contemporâneas do país. Assim, pretende-se analisar as possíveis relações entre a existência de um racismo estrutural na sociedade brasileira e uma de suas consequências mais nefastas: o genocídio da juventude negra.

O tema da pesquisa é a relação entre racismo e letalidade policial no Brasil, adotando como recorte de análise o estado de São Paulo partindo da hipótese de que as relações étnico-raciais no país são permeadas pela subalternidade e racismo, e desse modo, contesta a ideia de democracia racial brasileira. Para tanto, a análise busca aprofundar as estatísticas a respeito da brutalidade policial sobre a população negra, uma vez que 75,4% das mortes totais no Brasil decorrentes de intervenções policiais foram de homens negros, em 2018. Entretanto, o artigo destina uma maior parte da análise estatística para o estado de São Paulo, visto que, a título de ilustração, em todos os dias do ano de 2018 ao menos um jovem negro foi morto pela Polícia Militar paulista.

O objetivo é demonstrar os elementos de uma necropolítica praticada pelo Estado brasileiro contra a população negra, utilizando como procedimentos da pesquisa a revisão bibliográfica e análise de dados estatísticos. Os resultados finais se encontram na seção de considerações finais.

A primeira seção do artigo traça um panorama geral sobre a conformação do racismo na sociedade brasileira, destacando os seus fundamentos e as tentativas de solução dadas pelo Estado ao longo da história para findar as discussões sobre raça. A segunda seção apresenta a operacionalização do racismo de forma concreta por meio da análise de dados socioeconômicos de renda, mercado de trabalho e educação. Por fim, a última seção traz os dados sobre encarceramento em massa e a centralidade da letalidade policial sobre a juventude negra, caracterizando-a como uma das formas de genocídio propiciada pelo estado de São Paulo sob o comando da necropolítica.

  1. Desenvolvimento

2.1 Formação dos estigmas raciais e suas consequências

As relações raciais construídas no período escravista reverberam no comportamento e atuação individual e institucional do Brasil e dos brasileiros, podendo então ser analisadas suas consequências até os dias de hoje. Procura-se neste artigo discutir o legado da escravidão, com enfoque em um de seus mais graves desdobramentos: a alta taxa de mortalidade entre jovens negros no país.

O escravismo mercantil iniciado no século XV estabeleceu nas Américas relações de dominação e subordinação entre os senhores, os colonizadores brancos europeus, com os escravos advindos de diversas nações do continente africano. Para que esse sistema funcionasse por tantos séculos, como fundamenta Almeida (2019), o colonialismo criou tecnologias de dominação calcadas na distinção daquilo que seria civilizado e primitivo, e a ferramenta usada para esta categorização foi a raça.

Sob um racismo científico que atribuía características biológicas e geográficas para explicar "diferenças morais, psicológicas e intelectuais das diferenças raças" (ALMEIDA, p. 29), a escravidão pôde ser institucionalizada no século XIX. Uma ideologia originalmente europeia se transplantou para o Brasil, criando as bases para que fôssemos o último país a acabar com a escravidão no mundo.

Assim, o primeiro processo que antecede as práticas discriminatórias, as quais discutiremos neste artigo, foram a de desumanização e dessocialização dos povos de origem africana. Como descreve Márcio Sampaio de Castro (2008), os processos se deram:

(...) pela negação dos nomes próprios e o conseqüente rebatismo dos indivíduos com nomes portugueses. Pela mistura de indivíduos das mais diversas etnias africanas em um único espaço e a separação de famílias inteiras, ainda no porto de embarque da Mina, na costa ocidental africana. Se verifica durante o degradante transporte no tumbeiro, onde esses mesmos indivíduos são acorrentados e amontoados, devendo comer, defecar e urinar no mesmo local em que dormem. E, por fim, no trabalho nas fazendas e cidades, onde a vida média dos cativos raramente ultrapassará os quarenta anos de idade (CASTRO, 2008, p. 22).

A retirada da humanidade dos negros escravizados propiciou a atribuição de estigmas relacionados à "bestialidade" ou "ferocidade" de quaisquer pessoas negras, o que possibilitou um pretexto e explicação para a escravidão mesmo que no auge da concorrente iluminista e sua exaltação pela racionalidade (ALMEIDA, 2019, p. 28). Desse modo, uma inferioridade racial dos povos colonizados foi posta e justificada por meio de características biológicas e étnico-culturais.

Durante a escravidão, os cativos ocupavam os mais variados postos de trabalho compulsório. Como demonstra o sociólogo Clóvis Moura, no período 1818-1820, no Maranhão, havia cerca de 4 mil profissionais artífices, sendo mais de 3 mil escravos, que atuavam principalmente como alfaiates, carpinteiros, pedreiros e britadores. Além disso, dos mais de 3 mil escravos, 1800 atuavam como auxiliares nas indústrias. Já na área de São Paulo, os escravos eram os dinamizadores econômicos que ocupavam quase todas as frentes de trabalho (MOURA, 1988).

Como ressalta Moura

(...) Os negros não eram somente os trabalhadores do eito, que se prestavam apenas para as fainas agrícolas duras e nas quais o simples trabalho braçal primário era necessário. Na diversificação da divisão do trabalho eles entravam nas mais diversas atividades, especialmente no setor artesanal. Em alguns ramos eram mesmo os mais capazes como, por exemplo, na metalurgia cujas técnicas trazidas da África foram aqui aplicadas e desenvolvidas. Na região mineira, por exemplo, foram os únicos que aplicaram e desenvolveram a metalurgia (MOURA, 1988, p. 67).

Assim, durante todo o período escravista, o negro ocupou os mais variados setores de trabalho a fim de proporcionar o ócio dos senhores. No entanto, após as transformações sociais que culminaram na abolição tardia - apenas em 1888 -, a sociedade brasileira passou a desenvolver um mercado de trabalho e aos poucos a ser influenciada pela lógica capitalista, e para tanto, necessitava de mão de obra. É justamente nesse ponto que se percebe como o racismo fora crucial para o ordenamento social.

A forma de inserção social dos negros livres, e de qualquer parte da população seria pelo trabalho. Como fora demonstrado, a população negra tinha capacidade técnica e/ou, no mínimo, de experiência com os mais variados postos de trabalho, sua atuação não se restringia apenas aos setores de trabalho braçal. Entretanto, como salienta Nascimento, "a abolição exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado, e a Igreja. Tudo cessou, extinguiu-se todo o humanismo, qualquer gesto de solidariedade ou de justiça social" (NASCIMENTO, 1978, p. 65). Essa ausência de responsabilização do Estado brasileiro foi fruto da ideia de construção da modernidade e da identidade nacional que deixasse todo o "passado" para trás - como será discutido adiante sobre a construção da imagem nacional - , e isso culminou na total marginalização e exclusão social dos povos que foram escravizados e seus descendentes.

Além disso, a ausência de responsabilização das instituições foi somada a exclusão dos africanos e seus descendentes do incipiente mercado de trabalho, meio este que se tornaria vital para a mobilidade social. A maneira encontrada para garantir essa exclusão fora por meio principalmente de estereótipos que desqualificassem os negros de todas as formas, evocando o preconceito racial já existente na sociedade brasileira. Como ressalta Moura:

(...) O preconceito de cor é assim dinamizado no contexto capitalista, os elementos não-brancos passam a ser estereotipados como indolentes, cachaceiros, não-persistentes no trabalho e, em contrapartida, por extensão, apresenta-se o trabalhador branco como o modelo do perseverante, honesto, de hábitos morigerados e tendências à poupança e à estabilidade no emprego (MOURA, 1988, p. 69).

O mito da incapacidade do negro para o trabalho se tornou um dos principais meios de marginalização dessa parte da população, levando à morte grande parte dos ex-escravos (MOURA, 1988). Somado a isso, as políticas de Estado facilitadoras da imigração são identificadas por diversos teóricos como uma política de embranquecimento. Nascimento ressalta que a entrada massiva de imigrantes no Brasil no fim do século XIX significava um limitador para o "crescimento da população negra de qualquer maneira" (NASCIMENTO, 1978, p. 70). O imigracionismo também fez parte de um projeto de modernização que visava o branqueamento da população nacional a fim de promover o esquecimento da degradação que a população negra representava, pois ela era o reflexo direto da escravidão (HASENBALG, 1979, p. 154).

Os imigrantes passaram a ocupar a maioria dos postos de trabalho e esse movimento acaba por consolidar uma espécie de divisão racial do trabalho, onde o trabalho considerado qualificado e nobre pertencia à minoria branca, ao passo que o subtrabalho, geralmente associado ao sujo e braçal ficara disponível para a população negra (MOURA, 1988). Uma das justificativas formais para a adesão de imigrantes era a escassez de mão de obra, porém, como pontua Hasenbalg (1979), essa escassez era de mão de obra escrava, e os senhores não estavam dispostos a substituir por mão de obra de negros livres.

Após a política de imigração, os imigrantes, em 1893, compunham 79% das atividades artesanais e 81% das atividades comerciais enquanto a população negra pouco estava incluída nessas esferas (MOURA, 1988, p. 65). Enquanto isso, em 1890, a população negra (somando os negros e "mulatos", como se dizia na época) representavam 56% da população total livre do Brasil, segundo o Censo demográfico de 1950 (HASENBALG, 1979, p. 149). Ou seja, houve uma sobrerrepresentação da população branca nos postos de trabalho.

Além do mais, as primeiras décadas pós-abolição marcaram uma intensa perseguição às manifestações culturais e religiosas negras. Havia um entendimento por parte da classe dominante sobre um padrão de cultura ideal a ser perseguido pela incipiente sociedade brasileira, o padrão branco e europeu, portanto, "o país, para se modernizar, deveria abandonar as manifestações herdadas pelos descendentes de escravos, o que justificaria a repressão" (PAVÃO, 2004, p. 22). Assim, a população negra passou a ser vítima das repressões policiais, instituição coordenada pela classe dominante e apoiada pela Igreja Católica, caso fosse vista manifestando algum festejo popular, culto religioso, ou expressões culturais próprias como o samba e a capoeira, o que demonstra uma tentativa estatal repressiva de embranquecimento cultural, como enfatiza Nascimento (1978).

Desse modo, "as 'sobrevivências' do antigo regime são elaboradas e transformadas dentro da estrutura social modificada" (HASENBALG, 1979, p. 77). Conforme se dá o desenvolvimento capitalista e a estruturação da sociedade de classes, o racismo se manifesta pela desqualificação dos não-brancos a fim de que as estruturas de privilégios sociais dos brancos não fossem ameaçadas (HASENBALG, 1979, p. 77). Dessa forma, a estratificação racial e subordinação dos negros não é superada com o desenvolvimento da sociedade de classes, pois houve uma racionalidade por parte dos beneficiários das práticas racistas para a manutenção de estrutura e dominação dos brancos, já que o grande contingente populacional de negros poderia ser uma ameaça à ordem vigente.

Ainda dentro desse processo de entrada massiva de imigrantes, como fora citado, enviesada por uma política de branqueamento da população, pontua Renato Ortiz (1994), que o processo de clareamento da população deu origem a uma nova "raça" determinada pelos brancos, a qual ficaria conhecida como mestiça, mulata, e atualmente dita como parda. Essa estratégia compunha parte do projeto nacional do governo Getúlio Vargas, no final da década de 1930, que visava a consolidação do Estado nacional e a formação de uma identidade nacional cultural.

Para tanto, fora mobilizada a imagem do "mestiço" como sendo a imagem nacional, ou seja, uma nação que fora capaz de superar a escravidão e caminhar para uma harmonia entre as relações raciais na medida em que "se misturaram". Ao criar o "mito das 3 raças", a "mistura" entre brancos, negros e índios, como denomina Ortiz (1994), se encobre os conflitos raciais e se possibilita um reconhecimento nacional universal.

No entanto, à medida que ocorrem as transformações sociais, o que provoca o intercâmbio de pessoas e culturas, torna-se impossível a constituição de uma população "pura", movimento esse que ocorre em todos os países, inclusive no Brasil. Assim, as relações sociais e raciais no país ainda permanecem conflitantes e permeadas pelo racismo, provocando desde um apartheid social e desigualdade de oportunidades, como no limite, altas taxas de homicídios envolvendo pessoas negras como veremos adiante.

Portanto, nesta seção pudemos observar brevemente como ocorreu a criação de bloqueios estratégicos para a exclusão dos negros na incipiente sociedade de classes de maneira ardilosa e mascarada como ressalta Nascimento (1978). Ao longo dos anos, criou-se uma viabilidade da reprodução sistêmica do racismo nas esferas da economia, política e jurídica, como afirma Almeida (2019), de modo que o racismo passa a ser normatizado e estruturante.

2.2 Racismo estrutural e seus desdobramentos expressos por índices socioeconômicos

Com o início do processo de industrialização no Brasil, a partir de 1930, mudanças notáveis foram verificadas na qualidade de vida dos indivíduos e no processo de urbanização do país, porém, "o aparato e operações introduzidos pela industrialização ajustam-se e conformam-se ao padrão preexistente das relações raciais" (HASENBALG, 1979, p. 80). Portanto, o processo que se iniciou na constituição da escravidão ganha novos desdobramentos ao atribuir a determinadas raças posições sociais diferentes, prestígio, autoridade e poder diferenciados.

Compreende-se que, se há regras que privilegiam determinados grupos raciais, é porque o racismo faz parte da ordem social, e neste artigo entende-se racismo como:

(...) uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam (ALMEIDA, 2019, p. 32).

Dessa forma, ao afirmar neste artigo que o racismo é estruturante na sociedade brasileira e sustenta relações assimétricas de poder, entende-se haver uma sobreposição de um grupo racial sobre outro para que exista controle direto e indireto nas mãos de um grupo social, os brancos. A concepção estrutural pode ser observada empiricamente pelo comportamento das instituições brasileiras.

Atualmente, segundo dados produzidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e divulgados por meio do documento Desigualdades sociais por Raça ou Cor no Brasil, em 2018, a população brasileira é composta em 55,8% por negros (soma de pardos e negros autodeclarados). No entanto, ao destrinchar as posições sociais que ocupa a maioria da população do Brasil, observa-se uma latente desigualdade racial.

No plano econômico, observa-se a discriminação racial, por exemplo, através da relação salarial entre grupos racialmente distintos. De acordo com os dados produzidos pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), e divulgados por meio do Retrato das desigualdades de Gênero e Raça,,em 2015, a partir da análise do rendimento médio mensal no trabalho principal da população ocupada de 16 anos ou mais de idade no Brasil, o rendimento médio mensal da população branca foi naquele ano de R$2.176,20 enquanto o da população não-branca de R$1.266,80. Como argumenta Almeida (2019), o racismo pode ser usado como uma tecnologia de controle social que naturaliza o pagamento de salários mais baixos para trabalhadores negros e imigrantes, além de até mesmo dissuadir os trabalhadores brancos, pois ao reivindicar aumentos de salário podem ser substituídos por trabalhadores de baixo custo, e que geralmente estão disponíveis na força de trabalho já que estão mais suscetíveis ao desemprego.

Além disso, no mesmo documento produzido pelo IBGE citado anteriormente, observa-se que 57,7 milhões de pessoas negras estão inseridas na força de trabalho, ou seja, aptas e disponíveis para trabalhar, enquanto há 46,1 milhões de pessoas brancas. Considerando que a população negra representa mais da metade da população brasileira total, os dados não se manifestam conflitantes, no entanto, 34,6% das pessoas desocupadas (aquelas que estão desempregadas, mas estavam em busca de emprego na semana em que foram entrevistadas pelo IBGE) são brancas, enquanto 64,2% são negras.

Como demonstrado pelos dados, é possível aferir que o funcionamento do mercado de trabalho está de acordo com o ordenamento social vigente da sociedade brasileira, pois, como pretende-se demonstrar neste artigo, o racismo estrutural é o ordenamento social e, portanto, rege o funcionamento das instituições. No caso do mercado de trabalho, observa-se uma divisão racial do trabalho, fato expresso através do rendimento mensal de trabalhadores brancos e não-brancos, assim como estabelece um desemprego desigual entre grupos raciais distintos. Desemprego esse que não pode ser justificado pela falta de qualificação, pois ainda que a taxa de analfabetismo da população negra seja de 9,1% enquanto da população branca 3,9%, segundo dados do IBGE, os jovens negros representaram 50,3% dos estudantes em faculdades públicas em 2018.

Há uma segregação não oficial entre negros e brancos ao observarmos os dados, não oficial porque ocorre a argumentação de que a condição socioeconômica não deriva da condição racial. Porém, "como resultado da discriminação racial no passado, cada nova geração de não-brancos está em posição de desvantagem porque se origina desproporcionalmente de famílias de baixa posição social" (HASENBALG, 1979, p. 198). Com menores salários e sendo mais impactados pelo desemprego, a população negra fica suscetível a acesso limitado ou nulo de recursos competitivos que permitam uma maior mobilidade social e "voz" nas relações de poder.

O principal fenômeno que ocorre no Brasil para que a cultura popular acredite na inaptidão dos negros para certos trabalhos e sua falta de preparo intelectual é o racismo inconsciente, conforme afirma Almeida (2019). Os estereótipos de discriminação e desqualificação do negro podem ser mobilizados inconscientemente, ou seja, "o racismo constitui todo um complexo imaginário social que a todo o momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional" (ALMEIDA, 2019, p. 65). Assim, ocorre a assimilação de comportamentos negativos, violentos, inaptidão intelectual, ausência de uma ética do trabalho dentre outros estereótipos à população negra para que a mesma continue a ocupar um papel de subserviência e ausência de prestígio no ordenamento social.

Portanto, a elite branca brasileira, como adverte Moura (1988), cria bloqueios estratégicos que resultam em uma espécie de "imobilismo social", ou seja, a população negra passa a ser condicionada ao acesso restrito a espaços de poder, pois "a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo tornam-se o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade" (ALMEIDA, 2019, p. 40). Logo, haverá uma sobre representação desta população em todas as esferas sociais, não erradicando então o padrão de relações raciais calcadas na subordinação como iniciadas no sistema escravista, porém, concede ao racismo uma nova roupagem sob uma sociedade dita democrática. Várias formas de discriminação derivam do racismo estrutural, além da exclusão já discutida, este ordenamento se alia a políticas de Estado para viabilizar o extermínio da juventude negra no Brasil, o que será discutido na próxima seção.

2.3 O estigma do negro criminoso e o genocídio da juventude negra no estado de São Paulo

Como discutido nas seções anteriores, o racismo faz parte do ordenamento social da sociedade brasileira e, portanto, é manifestado nas instituições. A violência policial instrumentalizada por uma necropolítica estatal (o poder de matar), que resulta em assassinatos em massa de jovens negros, pode ser entendida como uma das formas mais brutais de exercício do racismo institucional. A necropolítica é uma esfera do exercício de poder da soberania nacional, uma vez que o Estado passa não só a regular a disposição dos corpos da sua sociedade, como também define "quem importa e quem não importa, quem é "descartável" e quem não é" (MBEMBE, 2016, p. 135). Grosso modo, a necropolítica atua sobre aquele corpo que deve ser eliminado, portanto, pode-se entender que ela serve como uma forma de organização do poder estatal em que "a justificação da morte em nome dos riscos à economia e à segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade" (ALMEIDA, 2019, p. 124).

Uma das demonstrações da necropolítica aplicada à realidade brasileira está na conformação e atuação das políticas de segurança pública do Estado. A escolha em analisar a letalidade policial no estado de São Paulo decorre da sua posição no ranking nacional de estados brasileiros com maiores taxas de mortes por intervenções policiais em relação às mortes violentas intencionais (MVI). A cada 100 MVI, 20 são de autoria policial. Portanto, São Paulo ocupa o 2º lugar com maior proporção de mortes decorrentes de intervenções policiais, no país, em relação às MVI, perdendo apenas para o estado do Rio de Janeiro, que possui 23 mortes de autoria policial proporcionalmente (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019).

Como se observará adiante, há um padrão de perfil de pessoas mortas por intervenções policiais, sendo ele: homem, jovem e negro. Apesar da violência incidir de outras formas na vida das mulheres negras, em relação às intervenções policiais, 99,3% das mortes decorrentes foram de homens (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019). Há uma normalização e normatização dessas mortes, uma vez que o caráter repressivo e coercitivo da instituição policial é viabilizado pelo Estado como política de segurança pela morte de pessoas negras.

Ao afirmar que a morte violenta de jovens negros é normalizada, precisa-se levar em consideração ao menos dois aspectos que permitem essa normalização, sendo eles a criminalização da pobreza e a construção da imagem do homem negro como criminoso. Como demonstra Almeida, "o racismo constitui todo um complexo imaginário social, que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional" (ALMEIDA, 2019, p. 65).

A assimilação da criminalidade ao corpo negro remonta a um legado do instituto da escravidão, onde a criminalização incidia em todas as esferas sociais da vida da população negra. Seja pela repressão às suas manifestações culturais, como demonstrado no início deste artigo ou pela discriminação legal no aparato legislativo, que até 1950 tinha a lei consuetudinária legalizando a não aceitação de "pessoas de cor" por parte das empresas (NASCIMENTO, 1978, p. 82).

A concatenação do histórico de estigma da personalidade dos homens negros e o racismo no direito penal e nas instituições se observam tanto nos dados como no inconsciente coletivo da sociedade. Como demonstra Carvalho:

(...) cria-se assim um ciclo: direcionando-se os esforços do Estado para punir determinados grupos, e cria-se no imaginário popular, que inclui também os agentes do sistema penal, a imagem detalhada de como seria o criminoso; quando são punidos, o volumoso número de pessoas com características semelhantes reforça a ideia de que o criminoso tem aquele perfil, e se tem aquele perfil deve ser criminoso (CARVALHO, 2017).

Assim, se por um lado observamos homens negros sendo assimilados a atitudes violentas e criminosas, por outro, temos uma desigualdade racial, social e econômica que permite a sustentação desses estereótipos, uma vez que os homens negros estão sobre representados no sistema prisional e não ocupam espaços de poder devido à segregação racial histórica no Brasil. Logo, se a sociedade não consegue enxergar a população negra em lugares de prestígio, mas consegue enxergá-la em meio à pobreza e a criminalidade, toda a população negra passará a ser interpretada como possíveis criminosos.

A criminalização da pobreza decorre primeiro do fato da pobreza incidir na maioria da população negra, mas também pelo fato da midiática "guerra às drogas" expor as favelas e bairros pobres como o epicentro da criminalidade e do tráfico no Brasil, o que permite uma assimilação "lógica" do estereótipo do negro criminoso (ALMEIDA, 2019, p. 66).

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em 2016, apesar de representar 34,6% da população total no estado de São Paulo (segundo o CENSO de 2010) os homens negros estão sobre representados como população carcerária, pois representam 56% dos encarcerados no estado. Além disso, eles também constituem 72% da população carcerária total do país.

Somado a esse encarceramento em massa, o levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública nos mostra que, em 2018, os negros representaram 75,4% das mortes totais no Brasil decorrentes de intervenções policiais em oposição a 24,4% de brancos. Isso demonstra a seletividade racial na distribuição da letalidade policial.

Em relação ao Estado de São Paulo, o comportamento policial não se difere. "A cada 10 pessoas mortas pela Polícia Militar, 6 são negros" (MARTINS, 2019). Ainda que os negros consistam em cerca de 34,6% da população do Estado de São Paulo, eles representam 64% dos mortos pela polícia. Em 2017, tivemos 853 mortes envolvendo interferência policial registradas, e destas, 62,1% eram negros, ou seja, ao menos todos os dias do ano de 2017, pelo menos um negro foi morto pela violência policial em São Paulo. O perfil dos mortos, além de ser homem e negro, também é jovem.

Os jovens de 19 a 24 anos representaram, em 2017, 40,3% do total de mortes por policiais. Os dados nos permitem concluir que não só há um extermínio da população negra em curso no estado de São Paulo e no Brasil, mas como dos jovens negros especificamente. Ao menos "27% das vítimas foram mortas sob a condição de "fundada suspeita", em ocorrências em que não era o objetivo o delito. A suspeição, em vários casos, se dá pela condição social e racial do "suspeito", que na sua maioria são moradores de periferia" (MARTINS, 2019). Assim, a construção histórica que liga o negro à criminalidade é refletida na instituição policial, ocasionando a morte diária de negros.

3. Considerações Finais

Este trabalho buscou pontuar sobre o surgimento da ideia de raça e a sua influência para a conformação do racismo como prática política largamente utilizada pelo estado brasileiro para a construção da sociedade, que fora fundada com base em privilégios brancos. O país pôde se inserir na lógica capitalista e sua elite pôde ganhar substância política e econômica porque foi deixada à margem a população negra e ex-escrava do processo político, pois, mesmo a partir do advento da sociedade de classes, a questão racial não foi problematizada para inserir os negros, mas sim para abafar as consequências da escravidão a partir do mito da democracia racial.

O artigo apontou que a raça e o racismo criam condições para que as vidas tiradas de pessoas negras sejam normalizadas. O racismo estabelece uma "linha divisória daqueles grupos que merecem viver e os que merecem morrer" (ALMEIDA, 2019, p. 115). Além disso, "a outra função do racismo é permitir que se estabeleça uma relação positiva com a morte do outro", ou seja, o Estado aplica a necropolítica por meio da geração de inimigos internos, e que, se esses inimigos forem exterminados haverá a garantia de segurança dos demais indivíduos e da sociedade como um todo (ALMEIDA, 2019, p. 115). Portanto, o poder de matar opera com apelo à "exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo, que precisam ser constantemente criadas e recriadas pelas práticas políticas" (ALMEIDA, 2019, p. 118).

O poder de matar se destacou neste artigo pelas intervenções policiais que levam às mortes compulsórias dos jovens negros, especialmente no estado de São Paulo, uma vez que de 62,1% das mortes por intervenções policiais ocasionadas em morte de homens negros, 40,3% foram de jovens negros. Concluímos, que todo dia, ao menos um jovem negro é morto pela polícia do estado.

Diante disso, este artigo aponta como resultado final genocídio da juventude negra em curso no Brasil. Os movimentos negros caracterizam como genocídio qualquer prática estatal que tenha impacto negativo na qualidade de vida da população negra. Para a Organização das Nações Unidas, o genocídio se caracteriza por "destruir, matar, limitar a reprodução física, cultural e social de um determinado grupo em desvantagem social em relação a outros grupos em determinada sociedade" (ALVES, 2017, p. 24).

Ambas as interpretações podem ser aplicadas ao caso brasileiro uma vez que a desigualdade racial incide sobre a esfera social, política e econômica e viabiliza diversas práticas sociais e políticas que impactam negativamente a existência das pessoas negras, seja através da desigualdade de oportunidades, da manutenção de estigmas sociais ou pelo extermínio em forma de violência policial, o que nos permite refutar a ideia de democracia racial em que as pessoas brancas e negras possuiriam uma relação harmônica e horizontal, pois é possível identificar que as relações raciais no Brasil são conflitantes e permeadas pelo racismo.

4. Referências Bibliográficas

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