Fez falta não ser tratada como criança

28/05/2021

Eu tive que crescer muito cedo e muito rápido, e eu tenho certeza absoluta de que ninguém deveria ter que crescer assim. Bem diferente de alguns grupos de pessoas, socialmente meninas como eu tem que ser muito mais fortes e enfrentar situações que exigem muita maturidade emocional.

Colocando em perspectiva, foram bem poucas vezes que alguém teve paciência de me explicar um processo de aprendizagem com calma e paciência durante a minha infância. Nos espaços em que eu passei as figuras de autoridade como professores, facilitadores e cuidadores ou nem me consideravam como alguém com potencial para aprender ou não tinham muito paciência e cuidado.

Meus pais sempre tentaram me preparar para isso, do jeito deles, que era fazer de mim muito mais preparada e madura que as outras crianças, e por um lado isso dava muito certo porque me permitia impressionar as pessoas e evitava que elas me tratassem mal, eu sabia cuidar de mim mesma.

Eu sabia me vestir, me alimentar, me limpar, eu sempre soube recolher minha própria bagunça e limpar minha sujeira. Meus pais me ensinaram tudo, até ser alfabetizada eu fui em casa, quando eu chegava na escola, na igreja, no parque ou no passeio eu já chegava pronta.

Independência e autonomia são características bem fortes na minha personalidade. Mas eu acho que isso me atrapalhou em desenvolver algumas habilidades que eu também gosto muito como a capacidade de me colocar em um colo e receber cuidados quando preciso.

Eu nunca fui muito tratada como criança. Nunca tive de verdade o direito de errar na escola, se eu errasse nunca mais minhas professoras me dariam a chance de tentar, porque elas já começavam achando que eu não conseguiria. Se eu sentisse alguma dor física ou passasse mal eu nunca contava. Eu não podia dar trabalho, eu já era mais trabalho do que as outras crianças só por ser quem eu era e estar ali.

Eu nunca fui uma criança que esperneia no supermercado ou que chora porque não recebeu o brinquedo que queria, não tinha acessos de raiva ou crises de choro. Minha mãe sempre fala que eu era um bebê que não chorava nem de fome. Minha família me planejou e eu fui criada com muito amor, mas eu principalmente nunca fiz nenhuma dessas coisas porque eu não podia.

"A prática de se reprimir os sentimentos como estratégia de sobrevivência continuou a ser um aspecto da vida dos negros, mesmo depois da escravidão. Como o racismo e a supremacia dos brancos não foram eliminados com a abolição da escravatura, os negros tiveram que manter certas barreiras emocionais. E, de uma maneira geral, muitos negros passaram a acreditar que a capacidade de se conter emoções era uma característica positiva. No decorrer dos anos, a habilidade de esconder e mascarar os sentimentos passou a ser considerada como sinal de uma personalidade forte. Mostrar os sentimentos era uma bobagem." - Bell Hooks, em "Vivendo de amor"

O que me faltou foi a possibilidade de por meus sentimentos no mundo da forma como eles eram e me vinham, e ainda assim ser amada e aceita pelas pessoas. Como é importante saber disso agora com clareza, porque antes de entender eu tentei buscar cobrir essas faltas de uma forma irracional, e ... infantil.

Minha criança era tão linda, meiga, delicada e gentil, agora eu tento dar as mãos bem forte para essa parte de mim também. Fico feliz em encontrar novos e inéditos espaços de expressões dos meus sentimentos infantis, e também dos meus sentimentos adultos, já que algumas situações da minha vida recente somente reeditaram o desamparo que eu vivi.

Relembro com carinho também os ensinamentos e preparações que meus pais sempre me deram. Acho que metaforicamente eu vou ser pra sempre aquela menininha de cinco anos se servindo sozinha e lavando o próprio pratinho depois. Só que agora com mais espaço e possibilidades para alguns choros repentinos...

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