“Não se faça de vítima”: o “cala a boca” das minorias

22/04/2021
Foto do site viverepiusani.it
Foto do site viverepiusani.it

Esses dias assistia a uma blogueira que contava a histόria de abuso pelo qual passou no casamento e, citando sua mãe como modelo de força e resistência, afirmou: "Mamãe nunca reclamou de nada. Nunca se fez de vítima". A frase é emblemática e incomodou-me sobremaneira. Ela reconhece o sofrimento da mãe, a admira por não ter desistido, mas exalta o fato de ela ter vivido tudo em silêncio, sem reclamar. Que crença está por trás disso?

Quem sofre, para ter reconhecida sua própria dor, tem que ficar calado e sobreviver a ela, para, somente depois, receber admiração. Esse pensamento é revelador das relações sociais no Brasil. Somos uma sociedade tão perversa para com os grupos e as pessoas oprimidas que impedimos que falem do próprio sofrimento. E quando falam, são acusados de se fazerem de vítimas.

Precisamos de um esclarecimento sociológico sobre a diferença entre "se fazer de vítima" e ser, de fato, vítima. Ser vítima é uma condição que não depende de si mesmo, é fruto de uma situação causada por um outro, um indivíduo, uma instituição ou uma estrutura, assim, não depende da vontade de cada um (a), é exterior aos indivíduos. Logo, é equivocado dizer que alguém "se faz de vítima" se o que aconteceu não depende da escolha pessoal. Quando alguém é vitima, a violência chega sem pedir permissão. Já se fazer de vítima é se colocar no lugar de quem sofreu uma injustiça, uma violência ou abuso, sem de fato tê-la vivido. Um exemplo de como se fazer de vítima está no vídeo do filho do presidente, o então senador Flávio Bolsonaro, chorando e enxugando as lágrimas na bandeira do Brasil, depois dos escândalos de desvio de dinheiro público do seu gabinete como parlamentar no Rio de Janeiro, apontado pelo Ministério Público. Neste caso, o COAF sinalizou movimentação suspeita por parte do seu assessor, Fabrício Queiroz, e o MP, encarregado de investigar o caso, viu fortes indícios de crime, o que levou a apresentar a denúncia. Onde está a vítima neste caso? Não tem. Tem alguém se fazendo de vítima. É clara a tentativa, do então senador, de se fazer de vítima, que até mesmo seus apoiadores o repreenderam, fazendo com que mudasse a tática, passando a atacar a imprensa. O seu direito de defesa está sendo garantido e ele só precisa provar na justiça que não cometeu tais crimes.

Flavio Bolsonaro chorando após as acusações de desvio de dinheiro público. (foto internet)
Flavio Bolsonaro chorando após as acusações de desvio de dinheiro público. (foto internet)

No caso da população negra, dos moradores de favelas e periferias, da população LGBT, dos indígenas etc., que todos os dias sofrem ataques, são humilhados, expostos ao ódio social e racial e até à morte, caracterizada como genocídio de alguns grupos, trata-se de vítimas. Devemos dizer isso bem alto para essa sociedade que exalta pessoas silenciadas diante da própria dor, pois somos um país que evita tocar na ferida, assumir responsabilidades para com os grupos marginalizados e apontar culpados, jogando a culpa no "cada um".

A relação dos oprimidos com a própria dor é a de camuflar, esconder, negar engolir até engasgar. E se morrerem calados, viram santos. Como a mulher que apanhou a vida inteira do marido e no dia do enterro está lá toda a vizinhança, que sabia de tudo dizendo: "Era uma santa a dona Maria!"

Para quem sofre, esconder a dor é questão de sobrevivência, pois o Brasil jamais quis discutir publicamente desigualdade social, racismo, escravidão, patriarcado, ditadura militar, autoritarismo, privilégio branco etc. Todas as vezes que se experimentou, essa discussão foi rechaçada pelas elites, como no caso da Comissão da Verdade, que gerou uma onda de ressentimento na ala militar e nos herdeiros dos ditadores e saudosos dos tempos da tortura e da mordaça. Falar da própria dor evoca reações das mais violentas possíveis, quando não, tentativas de desacreditar a vítima.

Já notaram como a branquitude ama negros e negras que não falam de racismo ou das próprias experiências de exclusão e dor? Como os ricos admiram pobres que lhes servem sorrindo sem jamais reclamar dos seis ônibus diários para chegar ao trabalho, lotados e precários, do salário que mal dá para sobreviver, dos bairros abandonados pelo poder público, da violência diária pela qual passam? Pobre bom é pobre contente, negro bom, é negro calado, não é Sérgio Camargo? Mulher boa é aquela que serve ao marido sem pestanejar e ainda agradece ao senhor o dom de nascer obediente, da costela do seu macho, não é Damares?

O povo incorporou a tal ponto que seu sofrimento é vitimismo que não se dá ao direito de sentir raiva diante das condições impostas a ele. Outro dia conversava com uma parenta e ela contou-me sobre as altas dos preços dos alimentos nos supermercados dizendo: "Aqui em casa agora só compro carne tipo músculo, acabou carne de primeira. Mas tá bom, né? Não podemos reclamar". Retruquei: "Reclamar pode, aliás, deve". É injusto um país que não oferece condições dignas a seu povo, que congela salários enquanto a inflação está nas nuvens. Podemos reclamar e como!

O discurso religioso também alimenta essa passividade e conformismo com frases clichês como "Deus quem sabe", "Deus quis assim". Deus quis que o andar de cima gastasse milhões em leite condensado, pizza, chiclete, picanha e cerveja e ao povo, a fome? Quem é vítima dessa política econômica tem que ficar quieto para não ser acusado de se fazer de vítima? O que é isso Brasil?!!

Como disse no início, o silêncio se apresenta como estratégia de sobrevivência dos marginalizados, mas sobreviver não é viver e, não falando para não incomodar ou ser acusado de se fazer de vítima, as pessoas acabam adoecendo. Por isso, é bom lembrar aquilo que a feminista negra, lésbica, afroamericana, Audre Lorde, nos ensinou:

"Quais são as tiranias que você engole dia após dia e tenta tomar para si, até adoecer e morrer por causa delas, ainda em silêncio?"

Quem é vítima precisa ser reconhecido como tal e tem todo o direito de colocar a boca no trombone, quem não é, precisa parar de impedir que a dor dos outros seja expressa. Visto que sofrer em silêncio também mata, que comecemos a falar, pois é preciso incomodar as elites no seu vitimismo e acordar a sociedade para que veja, de fato, as suas verdadeiras vítimas.

Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia 

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