Para não esquecermos... O racismo nosso de cada dia, a coisificação da vida humana e o assassinato de João Alberto Silveira Freitas.

12/01/2021

Em tempos de novo ano, em que sempre ocorre uma tentativa de esquecermos as agruras e dores que nos marcaram do ano que se finda, devemos redobrar nossas atenções para que tal forma de alienação psicológica não se realize no que se refere a tentativa de se apagar o que houve na rede assassina internacional de mercados localizado em Porto Alegre. Em outras palavras, não deixemos que o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, a olhos públicos, sem medos ou pudores por seus algozes, caia no esquecimento sistemático de nossa grande mídia quando se trata de nossas dores e mortes.

Portanto reforcemos que um ser humano, um homem negro com suas contradições, complexidades, subjetividades, virtudes e defeitos como qualquer - que surpresa! - ser humano foi assassinado pelo maldito racismo estrutural da sociedade brasileira. Cabendo a nós não deixarmos que a rede assassina escape de sua culpa, de sua responsabilidade por este - dentre tantos - morticínios que ela direta ou indiretamente se faz costumeiramente envolvida em nosso país. Que sua campanha de marketing e de repaginação social não seja mais significativa e importante que a vida de João Freitas. Uma pessoa em que nada pode ser utilizado para justificar a barbárie de sua morte, pois ninguém pode ser previamente julgado, condenado e ser espancado até dar-se cabo a sua vida. Em outras palavras, não há justificativa para o que houve em Porto Alegre, na noite de 19 de Novembro de 2020. Não há justificativas, mas há explicações...

Sua morte é mais uma das inúmeras que sistematicamente caracterizam como as populações negras acabam sendo tratadas pelo nosso imaginário social. Como "coisas", "peças", "bestas", "animais", "seres bestializados" que devem ser tratados a força, para manter-se em seus lugares de inferioridade social. Devem ser aqueles que seguem a risca os pormenores das leis, não sendo a eles permitido um mínimo desvio de rota, pois se isso ocorrer o rigor máximo de punição se faz presente, de maneira incontestável e implacável.

Toda uma série de rótulos e estereótipos negativos já são parte dos cotidianos das populações afrodescendentes no Brasil, pelo simples fato de serem negros - em suas mais variadas pigmentações - mesmo não "andando" um milímetro fora dos padrões de comportamento do que se define enquanto "ordem social". Mesmo sendo um "negro/preto comportado", um "negro/preto educado", um "negro/preto simpático", ele é rotulado pela coisificação dos seus corpos, que sempre caracterizou o olhar de nossas elites dominantes sobre as suas populações "não brancas". Essa é a nossa gênese social civilizatória, está no nosso alicerce de eterna nação inconclusa... Em que direitos são transformados em privilégios que acabam definindo como as riquezas de nossa sociedade, assim como os usos e frutos dos poderes - políticos, econômicos e sociais - que movem e caracterizam as nossas relações formais e informais de convivências, sempre se fazem apartados das populações negras do Brasil, ocasionando uma naturalização subjetiva, mas de efeitos práticos, que acabam por assim constituir e reproduzir, por séculos, o nosso racismo estrutural.

Somos o fruto do conceito de coisificação em relação as populações "não brancas" têm origens religiosas, de uma deturpação dos fundamentos judaico-cristãos oriunda da Idade Média, que acabaria por balizar e ratificar a superioridade da "raça branca" perante as demais, como se fosse isso uma vontade divina e não uma construção humana para assegurar um processo de exploração de determinado grupo humano sobre outro. De uma prevalência de interesses e valores econômicos, acima de valores de pertença humana.

A coisificação se faz presente desde os primeiros relatos dos viajantes europeus pela África, Ásia e América, se intensificando a cada momento de avanço europeu em novos territórios, num processo de busca de se implementar sociedades europeias em outras terras, na sanha de salvar as almas, em nome de Cristo, das populações locais do paganismo e ao mesmo tempo invadir e ocupar estas áreas, assegurando todos os seus usos e riquezas para os seus familiares, amigos, agregados e descendentes, estabelecendo a constituição de uma sociedade organizada em uma separação básica e fundamental entre os "meus", os "nossos", o "nós" contra os "não meus", os "eles", os "outros", baseada na cor da pele. Em que a tonalidade da epiderme, o quanto mais próxima da máxima branquitude, maior seriam os seus privilégios e poderes em relação a aqueles em que os tons de pele fossem próximos de uma máxima negritude. Não por acaso os indígenas eram chamados de "negros da terra", quando dos primeiros tempos de invasão e colonização lusa...

Até mesmo Gilberto Freyre, ideólogo e promulgador maior da falácia conceitual e intelectual da democracia racial brasileira, aborda e desenvolve suas reflexões sociológicas sobre a formação nacional e a especificidade civilizatória do Brasil, parte da constatação e condenação da coisificação das populações negras por nossas elites conservadoras e retrógradas. Ou seja, a coisificação das pessoas negras, despossuídas de suas humanidades e subjetividades pelo olhar daqueles que as enxergam pela ótica de nosso sistema elitista e racista, que as transformam enquanto massa corpórea não humana é prática corrente em nosso país, tal qual um padrão codificado que de tão embrenhado a nossa alma social, não precisa ser explicitado, não precisa ser formalmente reproduzido, pois já se faz subentender em nossas práxis diárias, em diferentes escalas e perspectivas, mas inerentes ao nosso tecido social como um todo.

Não por acaso, algumas das expressões, com as suas devidas variações regionais, mais nefastas de nosso racismo e que corroboram a nossa análise são "coloque-se em seu lugar/não sabe qual o seu lugar/negro/preto, ponha-se no seu lugar/a senzala é o seu lugar/o seu lugar não é aqui/aqui não é o seu lugar". Expressões que de séculos em séculos, se fazem comuns aos nossos diferentes cotidianos de país continental, sendo presentes em todos os níveis sociais, em todos os recortes classistas, mesmo antes do advento das redes sociais e a sua "diminuição" das distâncias e fronteiras entre os lugares geograficamente mais distantes e isolados. Em outras palavras a coisificação das pessoas negras enquanto corpos e apenas corpos, portanto sem direitos, vontades e humanidade, é elemento inerente a nossa construção social, a nossa formação enquanto país elitista e racista, enquanto nação incompleta e não-cidadã desde os nossos tempos coloniais até nossa moderna contemporaneidade.

É por isso que o assassinato de João Alberto Silveira Freitas não foi obra de um acidente, de uma acaso, de uma fatalidade desprovida de razão ou fatores, mas sim enquanto consequência direta de nosso racismo estrutural fundante, um fato diretamente reconhecido, através de uma série de pronunciamentos oficiais, pela Organização das Nações Unidas, pela própria rede de mercado envolvida diretamente ao caso, assim como da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Não é portanto "vitimização" ou "importação de fenômenos sociais estrangeiros" - como ruminam os acéfalos de nossa mediocridade humana - ante a "nossa" brasilidade idílica, social e racialmente harmoniosa. Mas sim como um exemplo de nossa violência sistêmica de perseguição e extermínio imposta as populações afrodescendentes brasileiras, que só se tornou pública graças as redes antirracistas e de negritudes que se articulam cada vez mais, divulgando, condenando e cobrando soluções e punições a estes atos. Não apenas soluções pontuais, mas sistêmicas, estruturantes. Caso contrário, seria mais uma morte "aleatória", uma "fatalidade" justificada em que a vítima seria culpabilizada.

E mesmo com todas as evidências, insisto, até mesmo - indiretamente - corroboradas pela própria rede de hipermercados e pela Brigada Militar riograndense, com todo um arcabouço teórico que demonstram como o racismo o brasileiro atua de maneira sutil e dissimulada, em seu processo de extermínio ante as populações negras, culpabilizando sempre as vítimas e os explorados pelas suas fatalidades e mazelas, o que se assiste é uma busca em que desqualificar o assassinado, buscando suas experiências e vivências particulares potencialmente desabonadoras como que para justificar o injustificável, que foi o seu linchamento público. Como se estivessem querendo desacreditar, desqualificar toda essa onda de protestos, de revoltas para manter inconteste, intocável as estruturas desse sistema que permanece imutável desde os nossos primeiros passos enquanto nação.

Não sendo por acaso que há por vezes uma preocupação maior com as vidraças dos estabelecimentos que são alvos físicos dos protestos organizados pelos movimentos negros, do que com a vida humana em si que foi perdida nesse caso em especial, ou das já inúmeras vidas que foram vitimadas por uma política sistêmica racista de segurança desta marca internacional, que parece ter encontrado em terras brasilis local para praticar uma série de atrocidades, com a benevolência de nossa estrutura judiciária que a grosso modo sempre se mostrou tímida em suas ações contra tal realidade.

Existe uma negação conjuntural, quase que como um surto, em se impedir que qualquer contestação ao nosso sistema social vigente seja formulada e divulgada. Eventos, atos de combate ao racismo, ações anti-sistêmicas tais quais as realizadas por todo o Brasil, quando ocorrem em outros países são louvadas, defendidas e valorizadas em suas importâncias e historicidades, em suas práxis e reivindicações políticas. Ao passo que quando essas lentes críticas e, que deveriam ser, imparciais se voltam ao nosso país, todos os atos de processos passam a ser classificados enquanto ações de vandalismo. Sendo essa também uma característica de nosso racismo estrutural, o de condenação explícita, por vezes, visceral do racismo dos "outros" - sejam esse "outros" pessoas ou países - e toda solidariedade as populações vitimadas por ele, mas de postura totalmente oposta quando se trata de nossas relações sociais internas, prevalecendo uma condenação não do agressor, mas da(s) vítima(s) que ousam denunciar os males aos quais são submetidas, e toda solidariedade é dada não a ela(s) mas ao sistema em si, como se ele fosse a vítima em questão ao ter questionado a sua condição de representação simbólica de uma sociedade "socialmente harmoniosa e racialmente democrática". É uma sociedade que condena as suas populações oprimidas e discriminadas duplamente, pelo racismo a que são secularmente submetidas e por elas ousarem não aceitar os seus (não) lugares em nossa estrutura racial-social. As punindo de maneira implacável por tal ousadia.

Nem que para isso precise ser mais ainda desumanizada a pessoa que sofre o racismo, sendo coisificada em vida e após morte, como é o caso que a todos se faz expor em relação a João Alberto, que foi um ser humano, um homem negro assassinado pelo nosso racismo estrutural pelo fato de não saber, ou não querer, se comportar como dele se esperava socialmente, por "não saber" se portar em situações de convivências humanas, por não "se adequar" ao lugar que se faz "naturalmente" reservado as populações afrodescendentes em geral, como massa disforme não humana, bruta, portanto inferior e perigosa, devendo por isso serem reprimidas sempre que necessário. O negro João Alberto Silveira Freitas teve sua vida ceifada pelo nosso racismo estrutural por não saber ocupar o "seu lugar" em nossa sociedade.

Ah, mas quantos "brancos" agem dessa maneira também? Tem esse mesmo tipo de comportamento? Poderão indagar... Digo que vários, inúmeros, mas quantos sofrem violências como as praticadas no caso de Porto Alegre? Ou mesmo similares? Alguém sabe citar algum caso? O silêncio que se segue, acredito que seja a resposta ante essa questão!

Não há atenuante, insistimos, para o que ocorreu naquela noite maldita, nem mesmo suas possíveis atitudes desabonadoras em relação a um histórico de violência contra mulheres, pois embora lamentáveis e inaceitáveis se forem realmente verdadeiras ele não foi agredido até a morte, informalmente, julgado e sentenciado por isso - em vista que os seguranças não sabiam destas particularidades da vida pessoal da vítima - mas foi espancado e morto, imobilizado e sem chance de defesa, pelo fato de ser um "negro abusado", um "negro folgado", um "negro perigoso", que não ousava se portar de maneira cordata como devem se portar todos iguais a ele. Há certa pessoa pública com histórico notório de violências, ameaças, machismo em público, inúmeras formas de violência e misoginia, que acabou tornando-se símbolo de virilidade, autenticidade e balizador moral da nação, não me recordo de ter sido espancado até a morte, ledo engano tornou-se presidente do Brasil. Por que esse tratamento diferenciado de percepção? Por que tais destinos tão diferentes? Será o fato de um ser negro/preto e o outro branco? O mito de nossa brasilidade socialmente harmoniosa e racialmente democrática não resiste a mais rasa das comparações, é castelo de areia que se desmancha ante o vento da realidade...

"Vidas negras importam", mas não no Brasil! Hashtags antirracistas são lindas, dão likes e prestígio social... Mas quando ocorre um caso de racismo que acaba por colocar em xeque o sistema ao qual estamos diretamente ligados, o racismo brasileiro em seu estado larvar se manifesta através da reivindicação de preservação-valorização de nossa identidade nacional miscigenatoria, ignorando o quanto esta foi utilizada - inclusive enquanto política de governo - para "limpar de nossa terra" a presença da herança africana em nossa população. Que democracia racial é essa? Que mata e estigmatiza os afrodescendentes, mas nunca os respeita e os reconhece enquanto seres humanos.

O oprimido não pode ser podado de sua revolta e nem condicionado em sua indignação. Não cabe a quem fora desse grupo étnico-racial dizer como ele deve agir ou se portar, querer pautar e dirigir como deve ser sua práxis política de contestação ao sistema, nem como deve se opor ao sistema que sistematicamente o desumaniza, o persegue e o mata, não só a ele como todos aos seus! Cabe a quem não concorda com as manifestações revoltosas decorrentes desse último - por enquanto - assassinato, organizar suas próprias ações políticas e de solidariedade aos movimentos e organizações antirracistas e pró negritudes, procurando estabelecer formas de diálogos francos e abertos com aqueles que são as vítimas sistêmicas de uma realidade que os atinge diretamente, que os estigmatiza e mata na prática, e não mais se portarem acima do bem e do mal, baseados em seus achismos e protegidos de seus efeitos pela branquitude que os situam sempre em privilégio ante as populações "não brancas" de nossa sociedade.

A podridão de nossa alma enquanto sociedade racista e hipócrita se fez manifestar não somente pelo assassinato do João Alberto Silveira Freitas, mas principalmente pela postura, em especial das elites - ou das pessoas que se pensam enquanto elite - e seus órgão representantes (setores da grande mídia, ideólogos, políticos) que buscam normatizar o ocorrido como um fato extemporâneo a nossa estrutura social e a nossa história. O que consideramos enquanto estarrecedor, mesmo para uma sociedade em que esquizofrenia e bipolaridade são utilizados como atenuantes para práticas racistas. Enquanto sociedade ou enfrentamos tal dilema e o superamos, ou as tensões se farão cada vez mais sentidas, pois essa nova geração dos movimentos negros foi batizada nas lutas das ruas e sarjetas nas inúmeras manifestações contrárias ao assassinato de Porto Alegre, viram que não estão só, perceberam que são muitos na luta, que conseguem se articular apesar das diferenças e pluralidades políticas, e que sua voz é poderosa, se faz ouvir e incomoda muito o sistema. Além do que também perceberam que a militância virtual por si só nada muda, é "ação política responsável e bem comportada" que o status quo gosta. Por isso das ruas não vão mais se separar e a sociedade brasileira terá que aprender a lidar e respeitar com isso, por bem ou por mal, terá que lidar com isso.

Ou deixaremos que mais uma vida negra seja usada para audiências dos grandes jornais? Para gerar comoção e engajamento nas mídias sociais para "youtubers" e "artistas" solidários a "causa antirracista" e a nossa dor, mas que só aparecem milagrosamente quando novos corpos de nossos irmãos e irmãs se fazem vitimadas pela monstruosidade de nosso racismo estrutural?

E por isso eu pergunto "de que lado você samba?", de que lado você vai ficar? Da velha ordem que teima em não sucumbir, ou daqueles que buscam semear novas primaveras, dos que não se curvam ante a podridão da alma de nossa sociedade racista?

Que não deixemos a morte de João Alberto Silveira Freitas, ter sido em vão! E que o nosso fel seja a morte daqueles que nos desejam a morte!

Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros

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